domingo, 17 de junho de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 8

Capítulo 8 - Eugênio C. e Sem Chapéu

Para Adão e Antônio (1), as parcas vezes que estiveram com Domenico para negociar, foram suficientes para atiçar a cobiça. O dinheiro dele, somado com suas fraquezas, despertou um desejo forte e contundente, como se fosse sede ou fome. A visão de um futuro próximo, com dinheiro para gastar levianamente nas mesas de baralho, seduzia e eclipsava o que haveriam de ter de bom em seus corações. A imagem das notas de réis que saiam do bolso do paletó do moço emitia um brilho sedutor, que cegou definitivamente qualquer sinal de bom-senso da mente dos dois tolos.

Já Eugênio C...

Não... Ele não tinha tido contato com o dinheiro e ao ouvir o convite de Antônio para participar do roubo, aceitou incontinente.

O que teria levado Eugênio a se deixar seduzir tão rapidamente por um plano tão fúnebre e leviano?

O testemunho dado por Lourenço Matias do Amaral, o Sem Chapéu (2), 85 anos de idade, brasileiro, viúvo, residente em Indaiatuba desde 1855, tomado no dia 25 de dezembro de 1907, pode ser, mesmo que muito subjetivo, uma das referências a ser considerada para que se compreenda a atitude de Eugênio, que entrou rapidamente no macabro consórcio.

Sem Chapéu (3) declarou que trabalhava como caseiro para dois contratantes, Dona Amália Camargo e para o Sr. Francisco José de Araújo, o Chico de Itaici, com quem morava em um casarão na esquina do largo da Matriz (onde mais tarde seria a primeira sede do Indaiatuba Clube).

Iniciou seu depoimento narrando um furto que fora vítima há cinco ou seis anos antes. Naquela ocasião, todas as manhãs, ele saia às cinco horas para trabalhar e naquele dia, ao voltar às seis da tarde como de costume, encontrou o fundo da casa arrombado. Notou a falta de dois ternos de fraque “...dados pelo Doutor Velloso, Juiz de Direito de Itu (4)  e trezentos réis economizados. O coronel Teóphilo de Camargo, irmão de Dona Amália, até tentou ajudar a encontrar o responsável, mas ele “não ficou sabendo quem foi o gatuno.”

Contou em seguida sobre outro furto, ocorrido desta vez há aproximadamente oito meses. Ele estava com amigos em uma festa na casa de Benjamin Constant de Almeida Coelho (dono da Fazenda Cachoeira) quando, logo após a meia-noite, o vinho acabara. Ele saiu dali com o propósito de ir até a venda de Ernesto Guintter, a fim de repor a bebida. Ao passar pelo largo da Matriz, sempre totalmente desabitado nesta hora, notou um vulto encostado perto de uma das palmeiras ali plantadas, que reconheceu ser Eugênio C.. Soube, no dia seguinte, que a matriz Nossa Senhora da Candelária amanheceu com a porta aberta e a sacristia arrombada. Também arrombado estava o cofre de madeira envernizada usado para coletar esmolas, “...tendo o gatuno ou gatunos deixado apenas uma moeda de vinte réis.”

Após apenas oito dias do ocorrido, quando o sino da matriz Nossa Senhora da Candelária marcava onze horas da noite, vindo da casa de Dona Maria Laura do Amaral, novamente notou um vulto encostado em outra palmeira, desta vez a mais próxima da igreja. Aproximou-se novamente para identificar a figura indistinta e novamente topou com Eugênio C., que falou:

“- Ô seo Lourenço, você todas as noites por aqui...”

Ao que ele respondeu:

“- E você também...”

No dia seguinte, a mesma coisa: porta aberta e sacristia arrombada. Só que com uma diferença: sem o cofre, “que certamente o gatuno carregou.”

O tal cofre foi encontrado após um mês, há aproximadamente um quilômetro do centro da cidade, em um local conhecido como Cabral, por trabalhadores contratados pela Câmara, para roçar o mato da margem da estrada.

Antes dos furtos na igreja, há aproximadamente três anos, Sem Chapéu conseguira formar um presépio a “custas de sacrifícios e de presentes que lhe fizeram pessoas ricas e de sua amizade”, que mantinha cuidadosamente guardado em sua propriedade, uma chácara de nome Aurora. Certo dia, ao ir para a chácara que ficava a “um dia” da casa onde morava, encontrou a porta arrombada, tendo sido furtado todo o seu presépio, “...um aparelho de louça completo que ganhara da família do Doutor Prudente de Moraes, ... a mobília cara que lhe deu Dona Francisca de Barros e outros objetos de valor.”

Desta feita, o major Alfredo aconselhou que ele prestasse queixa ao delegado, “...que ordenou diligências... mas que mesmo assim, não descobriram os gatunos.” Contou que


“...na segunda feira, primeira do corrente, três dias antes do desaparecimento nesta cidade do moço de nome Domenico [ele, Sem Chapéu, passou]... de fronte a casa de Eugênio C.... e viu ali os pés de uma imagem de Nossa Senhora Conceição... [que reconheceu]... ser uma das peças furtadas de seu presépio”.



Sem Chapéu perguntou para Elvira, filha mais velha de Eugênio, o que era aquilo, ao que a menina respondeu que “... era o pé de uma estátua que seu pai tinha quebrado em sua casa.”

O menino Benedito, de 5 anos de idade e filho do escrivão Luiz Teixeira de Camargo, que morava pegado à casa do Sr. Francisco José de Araújo, onde trabalhava e vivia Sem Chapéu, também foi outra criança que brincava com um objeto furtado de seu presépio. “Era um crucifixo galvanizado com prata, que o menino disse ter encontrado perto da casa de Eugênio” – narrou.

Expondo todos esses furtos em seu depoimento, Sem Chapéu teve a clara intenção de registrar que o responsável por tudo era Eugênio C. “...ou algum sócio dele.”

Sem Chapéu morreu 5 anos depois, com 90 anos, no dia 22 de julho de 1912, ocasião em que “a cidade inteira rendeu-lhe a última homenagem, e como reconhecimento, no Cemitério de Pedra, na 1ª. ala à esquerda, perpetuaram no mármore a sua gratidão um tributo popular”... idealizado pelo escrivão Luiz Teixeira de Camargo, de quem era amigo . Para quem, como nós, está há 100 anos de distância daquele cenário, essa figura tão singular e a querença do povo para com ela, faz-nos refletir sobre o quão verdadeiras (ou não...) e exageradas (ou não...) são suas acusações.

Mario Dotta tinha sua opinião formada e assim escreveu em seu livro sobre o crime: o depoimento de Sem Chapéu “nada trouxe de útil a não ser o desejo de participar do espetáculo, com a decidida contribuição da fantasia, num assunto tão sério em que é proibido mentir...”

Por outro lado, ao consultar as testemunhas do inquérito do assassinato do jovem Domenico, é interessante notar que outra testemunha não teve a mesma certeza sobre a índole de Eugênio, como testemunhou e fez questão de registrar Sem Chapéu.

Pelo contrário: mesmo após a confissão ser feita em sua presença, pelo próprio Eugênio, Frederico Borghi (5) se mostrou inseguro ao depor , por motivo de estar bastante comovido com um fato que presenciara entre o acusado e sua filhinha.

Frederico, com 43 anos, casado, artista, natural da Itália, era dono de uma oficina onde Eugênio trabalhou, junto com outros três oficiais. Narrou que, numa das duas vezes em que fora seu empregado, “...sumiram três facas de sapateiro... não sabendo atribuir a quem [na época] o desaparecimento das mesmas.”

Na cadeia de Indaiatuba mostraram para ele a faca que havia degolado Domênico. Ao olhar para o objeto, teve certeza, e ainda assim profundamente incomodado, que era a faca surrupiada de seu negócio. Demonstrando estranheza, ficou inseguro e não queria continuar o depoimento. Chamaram Eugênio, que fora da sela e sem nenhuma força ou algo que o obrigasse, confessou para ele, na frente do Major Alfredo, do Carlos Tancler e do escrivão.

Diante disso, Frederico afirmou que era sim, a faca que fora surrupiada dele.

Relutou tanto porque vira, no dia anterior, que a filhinha de Eugênio havia ido até a cadeia levar comida para o pai, a mando da mãe. Presenciou o forte abraço que o pai deu na pequenina, pedindo para que ela fosse dar um recado para sua mãe. Que dissesse que ele morreria inocente.

Presenciar essa cena o deixou “...com algumas dúvidas em seu espírito.” E mesmo reconhecendo a faca e ouvindo a confissão, “...não queria concorrer de modo algum para incriminar uma pessoa inocente”.

Quando o depoimento acabou, Frederico quis ouvir mais uma vez - pela segunda vez (!) a confissão antes de assinar.

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(1) As informações deste capítulo são advindas dos autos do processo.


(2) O depoimento de Lourenço Matias do Amaral Sem Chapéu tem início na p.180 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.

(3) Dona Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro, conta em seu livro “O Tempo e a Gente” que Sem Chapéu “...era baiano de nascimento, ... foi escravo do fazendeiro José Balduino do Amaral Gurgel, de Itu, razão do seu sobrenome “Amaral”. [Certo dia], muito embriagado... caiu sobre os trilhos [mas]... foi avistado a curta distância pelo maquinista do trem, que... parou a máquina bem próximo ao seu corpo. Salvo da morte, por um verdadeiro milagre... quis perpetuar o seu respeito e gratidão à Nossa Senhora, fazendo o voto de nunca mais beber e não mais usar chapéu... desse seu voto... originou o seu nome...”Sem Chapéu”, tão popular, quão estimado nesse lugar.”

(4) Mário Dotta afirma que nunca houve um juiz em Itu com esse nome.

(5) O depoimento de Frederico Borgui tem início na página 184 do volume 1 dos autos do processo.


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