terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Menino e o Trem

texto de Alexandre Luiz Barbosa,
originalmente publicado no livro "Um Olhar Sobre Indaiatuba II"


Nem sempre todas aquelas construções estiveram ali.
Não aos montes, como os olhos de qualquer um pode ver hoje.
Houve uma época onde as ruas se enchiam de crianças e os vizinhos se enchiam com os gritos delas.  Talvez ninguém soubesse dizer, naquela época, o quão saudoso seria a ausência daqueles gritos em tempos futuros. Não eram gritos de medo, nem de raiva... Na verdade eram gargalhadas, música solta no ar, e assim se divertiam todos os que foliavam por aquelas ruas.
Era a Vila Furlan de vinte e tantos anos atrás. A exatidão das datas teima em fugir, mas isso não impede que levemos esta prosa. As palavras que se completam relatam um tempo simples, onde ser criança era filosoficamente mais simples e tecnologicamente menos complicado.
Na sala da sua casa, onde a família se reunia todos os fins de tarde, um menino encaixava os trilhos de plásticos para montar uma singela estrada de ferro. Mas o pequeno nem mesmo sabia daquele nome, ele jamais falaria que aquilo que montava era uma estrada de ferro. Dizia, sempre, que montava a “linha do trem”. Solta e esparramada pelo chão estava a locomotiva, que como sabem, jamais seria chamada de locomotiva, era simplesmente o trem. Os vagões do trem eram encaixados à máquina. Com isso estava pronta a obra para a sua brincadeira. Uma linha de trem oval,  juntamente com o próprio trem e os seus vagões. Sem muito cuidado, colocava o brinquedo nos trilhos e se maravilhava quando o botão liga – desliga era acionado. Com ouvidos atentos, prestava atenção nos barulhos que ouvia. Um pequeno motor, alimentado à pilha, dava para o pequeno trem “comida” suficiente para entreter o menino.
Mas nem sempre a brincadeira se encerrava com o brinquedo. Por vezes e por varias delas, podendo ser à tarde ou no começo da noite, os ouvidos do menino percebiam outro barulho que vinha até ele trazido pelo vento. Era um barulho mais forte, quase que um tremor. O menino ficava fascinado com aquele barulho, mas quando o apito ressoava por aquelas bandas, uma certeza vinha junto com ele. Era o trem... E estava chegando.
O menino corria até o seu pai e pedia para que o levasse para ver o trem. Enquanto os dois se aprontavam para descer a rua e ir de encontro com a maravilha da época, muitos dos vizinhos também atendiam o chamado da máquina... Era inexplicável... As pessoas simplesmente saiam das suas casas, sem se importarem tanto com a novela, e desciam a rua para observarem o trem passando. Então o pai e o menino cruzavam os limites do portão e desciam à rua. Algumas pessoas sempre chegavam antes. O menino via que os adultos sempre se cumprimentavam e cruzavam seus braços para ver o trem. O som se aproximava e as perguntas das crianças aumentavam. Eles queriam saber como funcionava aquele trem, se haviam pessoas dentro dele, para onde ele ia... Para onde ele iria (?) (!).
Antes que a máquina passasse por eles, o menino ainda teve tempo para dar uma olhada por toda aquela área. A noite caia, mas dava para ver o horizonte diante deles. A visão do menino acompanhava o barranco e via no fundo da descida os trilhos que se conectavam, entre os trilhos muitas madeiras retangulares e pedras que preenchiam os espaços entre as madeiras completavam a famosa “linha”. Seguindo com os olhos avistava adiante muitos eucaliptos que acompanhavam a encosta do outro lado da “linha”. Além daquelas árvores que podiam ser vistas do outro lado, adiante delas, um trecho de terra batido entre a vegetação permitia certo movimento por ali. E os seus olhos seguiam sempre observando a vegetação, o matagal, que por sinal atingiam a altura do peito de uma pessoa adulta. Aquele lugar o fascinava, mas ele nem ao certo tinha palavras para explicar aquilo, apenas sabia que gostaria de descobrir. Nenhuma rede de computadores lhe daria a resposta, até porque os computadores da época só eram vistos nos gibis e em alguns filmes, ele nem sabia o que era... De repente o chão começava a tremer e as suas pernas podiam sentir o toque através do som, na mesma hora o menino se encontrava nos seus pensamentos perdidos e a sua atenção era novamente única e exclusivamente daquela máquina. O barulho era estrondoso, os vagões eram muitos, mas a velocidade era insignificante. O trem não era rápido. E era essa insignificância sobre a velocidade que significava alguma coisa. Dava pra ver, atentar para cada detalhe, nenhuma piscada de olhos...
O trem estava passando.
Vislumbrava-o na esperança de enxergar alguma pessoa. Ele queria ver, precisava ver... Ver uma pessoa no trem significaria, hoje, receber um e-mail que você tanto espera e que, talvez, seja de alguém que tão pouco conhece... Tudo pelo fato de quebrar barreiras e encurtar as distâncias. Parecia tudo muito estranho, mas era dessa forma, quando avistavam um dos funcionários do trem, geralmente na máquina que puxava os vagões, as crianças tinham o costume de levantar o braço direito, cerrar os punhos e subir o polegar. Eles chamavam esse sinal de “jóia”. Talvez fosse mesmo uma jóia esse tal de “jóia” que as crianças tanto gostavam de fazer para os maquinistas ou qualquer outro no trem. A maior recompensa para cada criança era ver seus sinais correspondidos. Mas naquele dia, nem ao menos viram uma pessoa. Depois que o último vagão passava, os adultos começavam a subir a rua. O pai do menino ia com os adultos enquanto mais atrás, ele vinha com algumas outras crianças. Na rua que subiam encontravam pessoas com as quais se punham a conversar. Os mais velhos chamavam aquelas conversas de prosa.
Diziam que estavam proseando.
E de fato era o que faziam.
Contavam ali coisas sobre as suas vidas, piadas, causos sobre o folclore. Eram histórias sobre onças, sacis, lobisomens, curupiras, entre muitas outras. As pessoas se aglomeravam para ouvir as histórias e causos. Naquele dia o menino e o seu pai pararam por ali para prosearem junto com os demais. O pai do pai do menino estava sempre entre os mais velhos. O menino o chamava de “Vô”. Não precisava de nome. Só aquilo servia. O fim de tarde já era noite e sentados na calçada e num banco em frente a uma das casas conversavam durante horas. Depois de tudo cada um seguia o seu caminho, o pai, o menino e o avô também voltavam para casa. A história do menino se confunde com um período, em que muitas das ruas da Vila Furlan ainda nem eram revestidas de asfalto e se fundi com um outro em que o asfalto chega juntamente com alguns novos moradores para o bairro.
Ainda pequeno, o menino pensava que a vida seria sempre daquele jeito.
A mudança começaria a aparecer quando avistou o último trem que passou por aquelas bandas. E naquele dia ele sinalizou com um “jóia” para o maquinista, o homem sorriu e estendeu o seu braço para fora do trem correspondendo o sinal do menino. Nenhuma lembrança relata se o menino correu para contar a todos ou se simplesmente ficou ali, imóvel. Anos depois toda aquela área coberta de mato e vegetação, que por sinal havia servido às brincadeiras e aventuras do menino, começava a ser povoada e as casas eram erguidas aos poucos.
Os vestígios de vegetação foram sumindo, os tijolos ganhavam seu espaço.
Novas ruas foram abertas e o único vestígio da vegetação que um dia ali crescia, é o nome do bairro que conhecemos hoje como Jardim Primavera.
A Vila Furlan tinha outra cara.
O menino começava a perceber que todos os seus ideais de infância estavam a desaparecer. Muitas das crianças que ali cresceram foram embora e poucos ficaram e permanecem.
O trem havia partido para nunca mais cruzar a Vila Furlan.
Muitos moradores pereceram com o tempo. Afinal ele passava para todos ali, inclusive para o menino. Outrora o pai, o avô e o menino subiam a rua. Hoje apenas o pai e o menino ainda fazem o percurso. Por vezes o menino ainda desce a rua, pouco se sabe sobre a sua idade ou o que acontece na sua vida nos dias atuais. Mas ainda assim ele se atreve a parar diante do barranco, que hoje é uma esquina, e de lá imagina a “linha do trem”. Dá até pra ver o trem passando e seguindo. Não se sabe dos passageiros, e nem quem comanda o trem nos seus pensamentos. Mas a pergunta que sempre pairava na sua cabeça nos tempos de infância ainda permanece, e por vezes o menino a repete: “Pra onde vai o trem?"
 Não há destino conhecido, ele apenas sabe que o trem não pode parar. Fisicamente o trem ainda está em Indaiatuba, como símbolo da história, numa estação que não nos deixa esquecer que ele passava por aqui.
Na memória, permanece.    


.....oooooOooooo.....


As imagens seguintes foram cedidas por Antonio da Cunha Penna.

É o último "trem" de carga (na verdade o correto é dizer "composição") que passou em Itaici.

Segundo Ralph Menucci Giesbrecht, pesquisador especialista em estações ferroviárias, o último trem de passageiros deve ter passado em Itaici em 1976 e o último trem cargueiro passou em 1987.








Um comentário:

  1. Chega dar uma nostalgia,meu olhar se perde nem mais no horizonte pois não há, dou de cara com um espigão bem em frente a humilde caso que alugo e por mais coincidencia,meu quintal da pra Estação de Trem...
    Eu moro quase no fim da 15 ,perto do que chamavam de matadouro,hoje só tem belas avenidas, eu até me perdi por ali tentando encontrar uma amiga,e ai eu resolvi nem procura-la eu pensei- pode nem mais existir,ja se vão 14 anos Thais, ela ja tinha uns 60, o que vais fazer ali ?arrumar choradeira?E retornei para casa com saudade de Adelina Mazoni Hackman,minha professora de encadernação.Obrigada minha querida.
    thaisreder@gmail.com

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